<div><font face=’Verdana’ size=’2′>Como em quase todas as suas relações econômicas, o Brasil, no disputado mercado do futebol, é um fornecedor de commodities. Produzimos craques ou bons jogadores aos borbotões. Eles brotam País afora como cana e soja. E até o caminho do estrelato – ou da desilusão – são tratados assim, feito commodities, como frangos desossados ou partes de um belo corte bovino prontos a serem exportados. <br /><br />Seduzidos pelo sonho da fama e fortuna, crianças e adolescentes, em pleno século XXI, e a despeito de imensos lucros de clubes e empresários que têm a sorte de revelar um novo Ronaldinho ou Kaká, continuam a ser submetidos a uma vida em condições precárias em times médios e pequenos. <br /><br />Os craques do futuro são instalados em alojamentos mambembes e sem higiene, com alimentação de péssima qualidade. São afastados da família – às vezes até sem a autorização oficial – e da escola. Sobram denúncias de abuso sexual. <br /><br />Nos grandes clubes existe a preocupação de matricular o jovem jogador em uma escola. Mas nem sempre há um acompanhamento adequado. Com o vai-e-vem de time e de cidade, são raros os que concluem os estudos. Nos clubes com menor estrutura, a situação é pior. Os jovens são submetidos a cargas excessivas de treinamento e a uma enorme pressão psicológica. <br /><br />A ausência do convívio familiar, a falta de estudo, a pressão e o risco de abuso sexual levaram o Ministério Público do Trabalho a fiscalizar a situação dos jovens atletas. Em São Paulo foram realizadas vistorias em vários clubes. Há um ano, um grupo de trabalho foi formado por procuradores de vários estados para analisar o problema em todo o País. <br /><br />A intenção é regulamentar a atividade para as crianças e adolescentes. “Estamos preocupados principalmente com a situação dos menores de 14 anos. Muitos clubes não têm a infra-estrutura mínima para receber esses jovens e, muitas vezes, nem a autorização oficial dos pais”, explica a procuradora Claudia Lovato Franco, do Ministério Público do Trabalho de São Paulo. <br /><br />Jovens jogadores fazem graves acusações. “Sempre ouvi falar de casos de pedofilia nas categorias de base de grandes times”, afirma R.M., 20 anos, ex-Corinthians e Portuguesa e hoje sem clube. “Alojamento sem higiene é coisa normal. Se a Vigilância Sanitária aparecer, ela fecha dezenas de clubes. Na Portuguesa Londrinense (PR), um amigo meu estava dormindo e um rato caiu em cima dele”, conta R. <br /><br />A.P., 19 anos, ex-Santos e também sem clube no momento, relata ter passado duas semanas na mesma Portuguesa Londrinense à base de arroz e pé de galinha, todos os dias. “À noite, a gente dormia no chão. E tinha de ficar com a bolsa e as roupas entre as pernas para não ser roubado”, afirma. Segundo ele, atletas menores de idade da cidade saíam diariamente com homossexuais e recebiam 200 reais por programa. <br /><br />CartaCapital visitou o alojamento da Portuguesa Londrinense, rebaixada neste ano para a Segunda Divisão do Campeonato Paranaense. Lá, os jogadores dormem em camas e beliches capengas com colchões velhos e sujos. Os quartos não estavam limpos e havia um forte cheiro de mofo e suor. “Aqui não tem nenhuma mordomia, nem quartos bonitos. Mas é limpo, sim. Uma vez por semana tem um cara meio ignorante aqui que bota a molecada para cuidar dos quartos e do corredor”, diz Amarildo Martins, 45 anos, dono de um autopeças, presidente da Portuguesa e também do Cambé, da cidade vizinha de mesmo nome. <br /><br />Ex-atleta do Operário de Campo Grande, Martins se define como um jogador razoável. “E a vida é difícil para quem é razoável”, sentencia. Ele nega que seus jogadores só comam pé de frango. “Isso é uma coisa inventada por um jornalista da tevê de Londrina. Aí, passaram a falar. A base da alimentação é peixe e macarrão, que tem carboidrato para os atletas. Nem eu tenho macarrão na minha casa todo dia. Podem ter sobrado uns dois pezinhos de frango de vez em quando. Mas quem falou isso é o maior mentiroso da face da terra”, rebate. <br /><br />O presidente admitiu que homossexuais costumam rondar o alojamento do clube. “Os gays sabem que aqui está cheio de garotos e ficam rondando. Mas o que eu posso fazer? Eu falo com os meninos, procuro conversar. Como sou evangélico (da Igreja do Evangelho Quadrangular), levo a palavra de Deus para eles. Sempre trago alguém aqui, de várias igrejas, para fazer a pregação”, afirma. <br /><br />São mantidos, no momento, no alojamento da Portuguesinha, como o time é chamado, 35 jovens das categorias júnior e juvenil. Os do infantil moram na região e não ficam alojados, garante Martins. Os atletas treinam pela manhã e à tarde. Já passaram pelo time craques como o goleiro Gomes (ex-Cruzeiro e hoje no Tottenham da Inglaterra) e os zagueiros Anderson e Miranda (São Paulo). Martins é um dos principais fornecedores de jogador do time paranaense do Irati, um dos preferidos pelo técnico Vanderlei Luxemburgo, do Palmeiras, para garimpar contratações. <br /><br />O sonho dos jovens jogadores da Portuguesa, como os de outros clubes do País, é jogar na Europa. Depois, a seleção brasileira. Martins diz que os orienta a não interromper os estudos. Mas a maioria parece não seguir o conselho. “Estou aqui há sete meses. Parei de estudar no terceiro ano do ensino médio”, admite Willians Fernandes Vieira, goleiro de 17 anos, da cidade paranaense de Assaí. “Mas vou voltar no próximo ano”, promete. <br /><br />O centroavante Hélio, 19 anos, de Ourinhos (SP), joga desde os 10 anos e também interrompeu os estudos no último ano do ensino médio. “É muito cansativo treinar e estudar”, reclama. O meia Henrique Leão, 20 anos, de Três Corações (MG), parou aos 17, no segundo ano do ensino fundamental. “Sempre comecei e parei. Se não houver estabilidade num time, é complicado”, garante. <br /><br />Leão lamenta ter sido obrigado a deixar o juvenil do Santos, onde passou quatro meses e foi dispensado. “O meu empresário na época quis muito, não entrou em acordo com o clube e eu fiquei sem a vaga. Prefiro nem comentar. Às vezes é melhor nem ter empresário. Tem uns que só te roubam”, reclama. O paulistano Caio de Melo Pereira, 15 anos, um dos mais jovens do alojamento, tem conseguido estudar. Está no primeiro ano do ensino médio. “Dá muita saudade da família. Mas a gente tem que se adaptar a essa vida”, afirma. <br /><br />Em outras regiões, a situação dos jovens atletas não é diferente. No Recife, os atletas das categorias de base do Santa Cruz – tradicional clube pernambucano que se prepara para disputar a Série D do Campeonato Brasileiro, depois de vários rebaixamentos – treinam num campo conhecido como “pantanal”, que passa a maior parte do ano encharcado. Onde deveriam ser os vestiários e refeitórios, tem apenas uma estrutura de alvenaria inacabada, sem armários, vasos sanitários ou água encanada. Ladrões costumavam invadir o local para roubar fios, material de construção e até assaltar jogadores. <br /><br />F.J., 16 anos, conta que o clube só fornece o campo, a bola e o treinador. “A gente tem de levar lanche de casa. Depois do treino, não tem lugar nem para tomar banho. Voltamos todos suados. Não tem lugar nem para fazer xixi e fazemos no pé do muro.” Muitas vezes, jogadores do juvenil treinam com os menores, de até 8 ou 9 anos. “Eles acabam se machucando”, lamenta. <br /><br />Pais de atletas denunciaram o Santa Cruz ao MP por causa das irregularidades. Há 15 dias, a procuradora do Trabalho Débora Tito e a promotora da Infância e Juventude Jecqueline Aymar convocaram os três principais clubes do estado – Náutico, Santa Cruz e Sport – para uma reunião. “Os jogadores têm os seus direitos ameaçados, principalmente quanto à educação e à convivência familiar”, alertou a promotora. <br /><br />As instalações das categorias de base são um exemplo de desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e às leis trabalhistas. Além da inexistência de comida no refeitório, faltam roupa de cama, higiene, armários e privacidade no alojamento improvisado sob as arquibancadas do estádio do clube. Os banheiros só foram reformados no final de 2006, graças a uma coleta de dinheiro realizada por alguns jogadores, indignados com os vasos sanitários quebrados e os poucos chuveiros, entupidos. <br /><br />Até setembro, a energia elétrica estava cortada por falta de pagamento e o gerador era desligado à noite para economizar óleo diesel. Os atletas não conseguiam dormir por causa do calor e da invasão de mosquitos. O estádio do time fica ao lado do Canal do Arruda, que recebe boa parte dos esgotos da zona norte da capital pernambucana. <br /><br />A nova diretoria do Santa Cruz, que tomou posse em outubro, admite as irregularidades e promete corrigi-las. O diretor das categorias de base, Carlos Frederico Galvão, diz que vai criar uma coordenação de saúde e de assistência para dar acompanhamento pedagógico, social e psicológico aos jovens atletas. “Precisamos apenas de tempo, pois as ações não podem ser implementadas de uma vez”, afirma. Galvão informou que o clube deve adquirir um terreno para construir um novo CT, próximo de duas escolas. <br /><br />Prometeu ainda se inspirar em experiências bem-sucedidas de parceria para solucionar os problemas. Mas o Santa Cruz não terá muitos exemplos para copiar. São poucas as experiências de clubes de futebol que tentaram assegurar formação e cidadania aos meninos que arriscam a carreira de jogador. Uma das poucas aconteceu no Vitória da Bahia, nos anos 2002 e 2003. Naquele ano, o clube baiano criou o projeto Bom de Bola, Bom de Cabeça, em parceria com a ONG Centro de Educação e Cultura Popular (Cecup), o Unicef e a Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. <br /><br />Segundo o ex-coordenador do projeto, Normando Batista, a proposta era oferecer uma formação educacional para os adolescentes de 15 a 17 anos. “A parcela daqueles que conseguem se profissionalizar é muito pequena, por isso havia esse investimento para que todos fossem capazes de identificar oportunidades além do futebol”, lembra Batista. Eram oferecidos cursos e oficinas sobre prevenção contra drogas, sexualidade, HIV, relações humanas, mídia training, informática e acompanhamento pedagógico. Mas a iniciativa não foi adiante. <br /><br />O confinamento de atletas em espaços inadequados também é prejudicial. Até o mês passado, 32 jovens jogadores do Esporte Clube Laranja Mecânica, da cidade paranaense de Arapongas , viviam numa espécie de república num casarão. À noite, tinham a companhia apenas do técnico, Luiz Balbino, ex-jogador do Cruzeiro e do Tupi de Juiz de Fora, que deixou o time recentemente. <br /><br />“Dá saudade demais. Mas, se a gente tem um plano na vida, tem que lutar por ele”, diz Wellington Marino, 16 anos, que saiu há um ano da cidade de Sapezal, em Mato Grosso, para treinar no Laranja Mecânica. Jonathan dos Santos, também de 16 anos, de Campo Grande (MS), é filho de um porteiro e uma empregada doméstica e só pensa em ajudar os pais. “Meu sonho é dar alguma coisa boa para minha família.” <br /><br />A distância dos parentes pode trazer prejuízos aos garotos, avaliam especialistas. “A criança e o adolescente estão numa condição peculiar de desenvolvimento. Além das questões materiais, precisam de referências familiares, culturais e comunitárias”, observa a psicóloga Lucia Helena Alencar, especializada em violência doméstica contra a criança. “Numa situação como essa, eles ficam sem o referencial de pertencimento, o que compromete o desenvolvimento saudável e adequado.” <br /><br />Os jovens que treinam muitas vezes em período integral perdem o direito à infância. Essa situação contraria o ECA. O artigo 19 da lei federal diz que toda criança “tem de ser educada no seio da família”. Já o artigo 53 assegura o direito à educação, “visando o pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”. <br /><br />A carga excessiva de treinamentos é outro problema. “Há um perigo no exagero de exercícios físicos. Faltam profissionais preparados. Dar treino para uma criança é uma questão delicada e é preciso uma formação muito boa para isso”, alerta Turíbio Leite de Barros Neto, fisiologista do Centro de Medicina Esportiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do São Paulo Futebol Clube. “Em muitos casos, quem costuma dar o treinamento é um ex-jogador. Não tenho nada contra ex-jogador. Mas é uma competência que ele não tem.” <br /><br />O MP paulista recebeu no ano passado denúncias de que crianças e adolescentes estariam sendo submetidos “a jornadas excessivas de trabalho” nos grandes clubes. Na época, um adolescente denunciou ainda ter sido vítima de assédio sexual no Corinthians. Um ex-gerente de futebol amador foi acusado. <br /><br />Em visita aos alojamentos do Corinthians para examinar as condições de trabalho e recrutamento das crianças e adolescentes das categorias de base, as procuradoras Mariza Mazotti, Débora Lopes e Maria José do Vale constataram problemas como sujeira, mau cheiro e chuveiros precários. Alojamentos do clube foram interditados. <br /><br />O supervisor das categorias de base do Corinthians, Wagner Rodrigues, o Vaguininho, afirma não ter conhecimento de casos de assédio e diz que o clube resolveu os problemas apontados pelo MP. “Os jogadores dos juniores, mais velhos, foram desalojados. Cada um agora passa a ter uma casa. Agora, só garotos da mesma faixa etária ficam juntos”, afirma. “Quanto ao estudo, a Federação Paulista de Futebol exige que o garoto mostre seu boletim de dois em dois meses.” <br /><br />Em Minas Gerais, o Cruzeiro está prestes a assinar um termo de ajustamento de conduta, com conteúdo elaborado pelo Ministério Público do Trabalho. Em núcleos que o clube mantém em municípios do interior também foram encontrados meninos sem freqüentar escola e instalados em alojamentos em péssimas condições, segundo Miriam dos Santos, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). <br /><br />A procuradora Claudia Franco vê a pressão psicológica como um dos problemas mais sérios para os garotos. “Tinha meninos em situação de tristeza profunda, porque eram obrigados a apresentar resultados e não conseguiam”, constata. Essa frustração pode ter conseqüências, observa Barros Neto. “A criança tem de satisfazer a expectativa do pai e da mãe. É uma cobrança injusta. Se não correspondem, há uma enorme ameaça à sua saúde mental”, afirma. Para o fisiologista, o Ministério da Saúde deve intervir nessa questão. “É necessário no sentido de estabelecer condições mínimas para a salubridade física e mental da criança”, defende. <br /><br />Enquanto isso, famílias ficam à espera do sucesso precoce dos filhos. Renan, de 10 anos, por exemplo, já é um craque versátil: joga no time de futebol de salão do Corinthians e no futebol de campo do Juventus, na categoria sub-11. Começou a jogar aos 5, nas categorias “chupeta” e “mamadeira”. No momento, é pretendido pelo Santos e pelo Palmeiras, segundo o pai, José Eronides Filho, 38 anos. “Mas meu desejo é que ele vá um dia para a Roma”, sonha Eronides, ex-atleta e motorista desempregado. <br /><br /></font></div><div><font face=’Verdana’ size=’2′>Por Gilberto Nascimento (Colaborou Inácio França (do Recife)</font></div><span style=’FONT-SIZE: 12pt’><font face=’Verdana’ size=’2′>Carta Capital, 11/11/2008</font></span>