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O polêmico calendário do futebol brasileiro e a vergonhosa omissão dos clubes

Mais uma vez nos deparamos com a polêmica do calendário do futebol brasileiro e sobre o tema vale a pena discutir algumas questões inerentes e que não vejo nenhum debate, sequer superficial, quem dirá mais aprofundado.

Primeiro ponto. O tema geralmente surge quando há reclamação de um treinador de “clube grande”, daqueles que participam de várias competições simultaneamente.

No início de novembro de 2024, o tema ganhou mais um ingrediente quando a CBF anunciou que as férias dos jogadores seriam divididas em dois períodos de quinze dias para que houvesse o encaixe com a criação da FIFA da nova versão do torneio denominado “Mundial de Clubes” que será disputado por trinta e dois clubes e junho/julho de 2025. Quanto a isso tratarei mais adiante.

ECO DA ELITE

Quando o assunto gira em torno das reclamações dos treinadores, alguém  já viu ou ouviu o treinador do União de Mogi das Cruzes (SP), do Olaria (RJ), do Anápolis (GO), do Pelotas (RS), do Trem (AP), do Uberlândia (MG), do CRB (AL), do Ceará (CE), do América (MG) ou qualquer outro que não dispute três ou quatro competições simultâneas, reclamarem do calendário? Eu nunca.

E por pura provocação os últimos três clubes mencionados aqui fazem parte da segunda divisão nacional, questão que poderia suscitar alguma reclamação, mas nem assim suscita porque, em via de regra, esses clubes disputam até três competições no ano, só que não de maneia simultânea.

E ainda há de se observar que as reclamações nunca vêm quando os resultados esperados são alcançados, elas aparecem depois de empates indigestos, derrotas e desclassificações. São usadas para justificar os insucessos nas competições consideradas importantes.

Basta lembra do último caso de reclamação de um comandante técnico. Tite, então treinador do CR Flamengo, reclamou depois de um empate em casa com o Cuiabá EC, resultado considerado como inaceitável porque o clube mato-grossense se encontrava na zona de rebaixamento.

Somente nessas ocasiões é que ressurge a discussão quanto ao calendário, que há excesso de jogos para esses clubes que disputam quatro ou cinco competições, algumas paralelamente, ao ano.

FLAMENGO EM NÚMEROS

Vejamos a situação do CR Flamengo do, então treinador Tite.

Em 2019, o clube participou de seis competições: Florida Cup, Campeonato Carioca, Copa do Brasil, Copa Libertadores da América, Série A do Campeonato Brasileiro e Copa do Mundo de Clubes da FIFA. Jogou 76 vezes.

Já em 2024, até o momento da reclamação de Tite, o clube havia disputado 59 jogos em quatro competições: Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil, Copa Libertadores da América e o Campeonato Carioca. Ainda naquele momento, menos que 2019.

Então, qual o motivo da reclamação? Claro, resultado desportivo.

Em 2019, mesmo disputando mais partidas o clube conquistou três títulos considerados importantes, já em 2024 “apenas” o título do Campeonato Carioca.

PALMEIRAS EM NÚMEROS

Se você se interessar em fazer outra análise de uma reclamação de treinador em 2023, que foi o da Sociedade Esportiva Palmeiras, de Abel Ferreira, vai encontrar um quadro muito parecido com o do CR Flamengo. Reclamação depois de eliminações.

Em 2020, o clube disputou 79 (setenta e nove) partidas; 2021 disputou 91 (noventa e uma) partidas, como o clube obteve conquistas importantes não houve reclamação. Em 2023, depois das eliminações, objeto da reclamação, constata-se que o clube disputou 73 (setenta e três jogos).

Tanto em um quanto no outro caso (Flamengo e Palmeiras) a reclamação surge quando os clubes disputam menos jogos, mas não conseguem os títulos desejados.

RECLAMA QUEM PERDE

Ninguém reclama quando se está ganhando e conquistando resultados, e as reclamações sempre partem dos treinadores. Não me recordo de nenhum dirigente reclamando do calendário.

Segundo ponto. Quando reclamam do calendário, o foco se direciona para as datas dos campeonatos estaduais, como se essas competições fossem menos importantes no contexto futebolístico.

Quando a pretensão é diminuir a importância dos campeonatos estaduais fica clara a falta de capacidade daqueles que o fazem. Já se perguntou qual é a relevância técnica desses campeonatos? Percebeu que quanto mais se tira o interesse desse tipo de competição, mais o futebol brasileiro se enfraquece em nível internacional?

COMPARAÇÕES

Até nosso último título internacional importante, a Copa do Mundo de 2002, eram os campeonatos estaduais que formavam os jogadores que traziam aquelas vitórias; eram “os estaduais” e suas rivalidades que fortaleciam o futebol nacional.

O campeonato nacional, embora criado oficialmente em 1971, começou a ganhar mais força e importância a partir dos anos 2000. Até então, o que valia mesmo eram os estaduais. A Copa Libertadores então, poucos clubes e jogadores queriam disputar. E o motivo era sempre o mesmo. Éramos roubados pelos argentinos e uruguaios que ainda apelavam para a pancadaria que era a forma de conseguirem equilibrar o jogo.

Quando eu presidia a Divisão América da FIFPro, organizamos um Congresso em Montevidéu e fomos recepcionados pelo presidente da República da época, Tabaré Vasquez, médico que presidiu o país ente 2005 e 2010 e de 2015 a 2019. Numa conversa descontraída ele manifestou o que pensava a respeito do futebol de seu país:

“Martorelli, depois que a FIFA introduziu o fair play (jogo limpo) e as televisões colocaram um monte de câmeras no campo que não deixam passar nenhum detalhe das jogadas, o Uruguai não ganhou e nem vai ganhar mais nada”.

QUEM SE COMPROMETE?

Mas quem tem realmente compromisso com a organização do nosso futebol e tem condição de entrar nessa discussão?

Quem, de fato, conhece ou quer conhecer o futebol brasileiro para buscar uma solução que, em vez de continuar o enfraquecendo com argumentos vazios, buscar caminhos de fortalecimento?

Quem vem a público para tratar as diferenças regionais, que são enormes, e propor diretrizes que possam trazer crescimento para todos?

É muito fácil querer diminuir datas dos estaduais ou chegar ao absurdo de propor sua extinção sem ao menos tentar conhecer a realidade do país.

703 CLUBES PROFISSIONAIS

Quem se importa que o futebol brasileiro profissional é composto, de acordo com o último levantamento do Relatório Convocados, por 703 clubes profissionais?

Aliás, número que vem diminuindo a cada ano, mas ainda assim, muito mais que os quarenta que compõem as Séries A e B do Campeonato Brasileiro, que são os considerados para qualquer discussão sobre o tema, inclusive no próprio Relatório citado.

ESTUDUAL SÃO PAULO

Você sabia que há um único campeonato estadual que se espreme para caber nas dezesseis datas reservadas para os campeonatos regionais?

Esse estado é São Paulo, que ainda teve que diminuir de vinte para dezesseis clubes as vagas para a Série A1 para acompanhar os outros vinte e seis campeonatos estaduais.

Sabia também que São Paulo, para seguir o modelo imposto, teve que estabelecer mais outras três Séries da primeira divisão estadual com dezesseis clubes cada?

Você também sabia que dos demais estados, em apenas seis deles a primeira divisão é composta de, no máximo, doze clubes?

Pois é. Então pergunto.

É possível discutir calendário sem tais informações?

TORCIDA CONTRA

Quem repercute essa desvalorização dos campeonatos estaduais são os torcedores dos “grandes clubes”. Torcedores que utilizam os órgãos da mídia em que trabalham para propagar a falácia da diminuição das datas dos estaduais. Há um segundo grupo de torcedores, que assim como o primeiro, também desconhece o tema, mas estão fora da grande mídia, porém também proliferam a falácia. Esse segundo grupo não somente propaga essa ideia estapafúrdia nos botecos da vida, mas também, e infelizmente, nos poderes constituídos deste país.

Pergunte para o torcedor raiz, aquele que torce por um clube do interior de qualquer estado do Brasil, se ele quer ou apoia o fim dos campeonatos estaduais e verá qual será a posição. Eu já fiz isso!

DIRIGENTES OMISSOS

Agora vamos para o ponto mais importante e a razão deste artigo: a omissão dos dirigentes dos clubes na composição das regras do calendário do futebol.

Quando a CBF vem a público e anuncia que as férias dos atletas seriam divididas, não houve sequer um único clube que se manifestasse contrariamente. O Sindicato de Atletas que o fez. Eu, no mesmo dia, enviei mensagem para o presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, dizendo que teríamos problemas.

PRÉ-TEMPORADA COMPROMETIDA

No dia 13 de novembro de 2024, a CBF divulgou o calendário de 2025 e, de uma forma ou outra, as férias de trinta dias foram mantidas. O problema agora é o período que os clubes terão para a preparação dos atletas para o ano, a pré-temporada.

Os atletas retornam das férias no dia 07 de janeiro e o início das competições estaduais está previsto para o dia 12, ou seja, apenas cinco dias de preparação. Até o torcedor mais distraído sabe que o resultado disso vai ser de uma sobrecarga que resultará em várias contusões sérias.

FÉRIAS – CONQUISTA DO SINDICATO

É sempre importante lembrar que o período de descanso ideal, com trinta dias, somente foi regulamentado em 2004 depois de uma sentença favorável resultado de uma ação judicial proposta por nós, do Sindicato de Atletas SP.

Quanto a pré-temporada, que se enquadra em período que o trabalhador atleta tem que ficar à disposição do clube empregador, infelizmente, há muito pouco há se fazer porque não há previsão explícita na legislação. No entanto, como se trata da integridade física do trabalhador, buscaremos fundamentos para essa preservação no judiciário trabalhista.

NA CONTRAMÃO

O pior de tudo isso é a forma como as instituições – FIFA, CONMEBOL e CBF, no nosso caso, que deveriam cuidar e zelar por aquilo que são responsáveis, trabalham exatamente na contramão. Mais criam problemas do que trazem soluções.

A criação da nova versão do tal “Mundial de Clubes” se mostra, como é a cara do próprio Gianni Infantino, presidente da FIFA, como uma maneira de obter poder e de arrecadar mais dinheiro.

ARBITRAIS EM SP

Durante os Conselhos Arbitrais das Séries A1 e A2 dos Campeonatos Paulistas de 2025 ocorridos dias 12 e 13 de novembro de 2024, fiz questão de tratar do tema e cobrar manifestação dos clubes. Apenas o dirigente do Red Bull Bragantino se manifestou em meu apoio. Dos demais ouvíamos um silêncio ensurdecedor.

RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR

Quinto ponto e muito necessário quanto ao tema.

O responsável pela integridade física do trabalhador é seu empregador, ou seja, o clube, não o sindicato.

Qualquer ação do Sindicato de Atletas SP terá foco em que o atleta, para preservar sua saúde e integridade física, não atue. Não há como impedir que o clube participe.

Para deixar a questão mais clara trago aqui um exemplo.

DIFERENTES TURNOS

Nos períodos em que as montadoras automobilísticas, por exemplo, precisam aumentar a produção, elas trabalham vinte e quatro horas por dia. No entanto, essa carga total de 24 horas é dividida em três turnos de oito, com equipes diferentes e os trabalhadores obedecendo a carga limite estabelecida na lei. Ou seja, a empresa trabalha com três times diferentes.

Entendeu o comparativo?

Se não entendeu eu explico.

O clube pode disputar quantas competições quiser, até de forma simultânea. Nesse caso, se utilizar três turnos de trabalhadores diferentes como as montadoras (três times), não teremos problemas. O problema é que eles – evidentemente que há o componente financeiro envolvido aqui; querem obter essa vantagem oferecida para cada disputa, mas não sabe diversificar aumentando seu elenco. Para tanto, utilizam, invariavelmente os mesmos jogadores nas diferentes competições que participam. Aí não tem jeito, a sobrecarga física e mental leva o corpo a pedir água através de contusões sérias.

VILÃO

Tudo isso significa que, se o Sindicato de Atletas SP obtiver sentença favorável, vai fazer com que os atletas sejam poupados e os clubes fiquem desguarnecidos em seus plantéis.

E quem será o grande vilão dessa história? Adivinharam?

Conhecem aquela história do “alguém tem que fazer alguma coisa”?

É a postura que os clubes adotam. Alguém tem que levar pronta as soluções que eles teriam que tomar, alguém tem que tomar atitude que eles, vergonhosamente, ao se omitirem de tema tão importante, não tomam.

Como querer que o futebol brasileiro volte aos tempos de glórias?

O Sindicato de Atletas SP vem há algum tempo debatendo e propondo ações que levem o Futebol Brasileiro de volta ao caminho das conquistas. Lamentavelmente não encontra eco, mas desistir nunca foi, tampouco será uma opção.

Rinaldo Martorelli
Presidente Sindicato Atletas SP

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Foto: Fabio Giannelli/Digital Sports Press

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