Atrás do prédio com mais de cinco andares que sedia a Federação Paulista de Futebol (FPF) na Barra Funda, região Oeste de São Paulo, um sobrado de paredes roxas abriga o Sindicato de Atletas Profissionais de São Paulo. De um dos cômodos adaptados para que se pareçam com escritórios, Rinaldo Martorelli, ex-goleiro do Palmeiras na década de 1980 e presidente do órgão desde o início dos anos 1990, representa uma classe que enfrenta baixos salários, alto desemprego e condições de emprego precárias: o jogador de futebol.
O sindicalista não quer saber de manifestações em público, nem de paralisações. "Essa coisa de sindicato xiita não existe mais. É muito fácil pegar, botar caminhão de som e impedir que o jogador entre no campo", diz Martorelli em entrevista a ÉPOCA. O caminho, decidido por ele para reivindicar reformas que reduzam a miséria para atletas, é negociar com cartolas de clubes e federações.
Tampouco tem simpatia por movimentos como o Bom Senso FC, de jogadores e ex-jogadores da elite nacional que militam por bandeiras como a reforma do calendário. "O Bom Senso tem fórmula mágica para tudo. Quando era para tomar atitude mesmo, ninguém tomou, porque é difícil enfrentar patrão nessa condição. Conseguiu repercussão midiática quando a questão era calendário, que parecia muito fácil mudar. Quando isso murchou, não vimos mais nada."
Em uma hora de conversa, Martorelli defendeu pautas que trata com a CBF, como implementações de um sistema de licenciamento de clubes e de uma câmara de litígios para acelerar disputas entre empregadores e funcionários, adiou discussões, como mudanças no calendário, e relatou dificuldades enfrentadas por ele no sindicato – a falta de mobilização da categoria, os maus resultados na Justiça e a dificuldade em conciliar interesses de quem faz o futebol.
ÉPOCA – Por que há tanta desigualdade nos salários do futebol?
Rinaldo Martorelli – Porque toda profissão que tem habilidade natural tem essa discrepância. Tem cantor ganhando aí R$ 500 mil por show, e tem cantor que faz show por R$ 300. Então é isso. Primeiro a capacidade natural, a habilidade, a qualidade. E depois as oportunidades que podem aparecer, muita gente boa fica para trás. Muita gente não tão boa, mas com outras habilidades, consegue continuar a carreira e até ganhar um salário bom.
ÉPOCA – Por que os atletas insistem nesta carreira?
Martorelli – Primeiro que o futebol dá a possiblidade de lidar com o sonho. Quando lida com sonho e possibilidade de crescimento profissional e financeiro, que vêm na mesma esteira, muito rápido, muita gente se aventura. Mesmo não tendo condição, continua se aventurando, continua permitindo essa situação, se sujeitando a essa situação. E aí para falar para o menino de 26 ou 27 anos que ainda não teve oportunidade num clube grande para parar, ele não vai parar. Enfim, isso requereria um trabalho de educação lá atrás. É difícil porque todo mundo visa uma transformação rápida de vida.
ÉPOCA – O que o sindicato fez para remediar esta situação?
Martorelli – Tem algumas propostas que a gente vem fazendo para minimizar os problemas, que não vão acabar. A questão do sistema de licenciamento de clubes. Quanto mais estruturado o clube for, maior vai ser a condição de pagar atletas. Porque é aquela história. Hoje, se for pegar no grosso, a gente tem 20 clubes da primeira divisão e 20 clubes da segunda divisão do Brasil em condições de pagar bons salários. Nada além disso. Lógico, trocando alguns da terceira e da quarta por alguns da segunda, mas o número é esse. Não passa de 60 clubes no Brasil pagando altos salários que todo mundo vê na mídia. O resto é muito baixo. Mas é muito baixo porque falta tudo. A cultura de permissividade nesse país, de passar a mão na cabeça de quem nunca cumpriu com as obrigações, fez com que a gente chegasse nesse quadro. A gente vai minimizar, mas impedir que um atleta se sujeite a trabalhar por 1 mil reais por mês, esperando depois de um ano, seis meses, ganhar R$ 100 mil, não vai acabar nunca.
ÉPOCA – O que é o sistema de licenciamento?
Martorelli – O sistema de licenciamento, que não é novidade no mundo do futebol, vai impor que o clube tenha estrutura mínima para ser considerado um clube profissional. Além de mostrar viabilidade financeira para o pagamento do salário, ele vai ter que ter estrutura para atender atleta nas questões médicas, mostrar condições de espaço para treinamento e jogos, é uma coisa mínima. Só assim o clube vai chegar a um nível que por consequência vai conseguir pagar melhores salários. A gente está criando uma situação de fazer com que os clubes se reestruturem. E nessa reestruturação eles terão condição de pagar melhor os atletas e de pagar em dia.
ÉPOCA – O que acontecerá com o clube que não conseguir a licença?
Martorelli – Vai trabalhar para se reestruturar. Não tem jeito. Ele vai cada vez descendo mais. Vai participar das competições compatíveis com sua estrutura. Não tem jeito. Se a gente não bater o pé nessa questão, nós não reestruturamos o futebol. Permitir que clubes possam jogar no mesmo nível de Corinthians, Flamengo, Cruzeiro, enfim, numa Copa do Brasil. Clube que não paga salário e não tem um médico para acompanhar a equipe, não dá. Não dá para sustentar o futebol nesse nível. Na Europa boa o modelo é esse. O clube precisa ter uma estrutura mínima para ser profissional, e não é à toa que os caras vêm e ganham da gente aqui dentro. E isso melhora tudo. Melhora a bilheteria, a credibilidade do esporte, geração de recurso, e esse recurso vai fazer com que o clube tenha possibilidade de pagar melhor.
ÉPOCA – Quantos clubes ficarão de fora?
Martorelli – É lógico que a CBF na pirâmide vai impor de cima para baixo. Não é tirar da competição, veja bem. É que ele jogue a competição compatível com sua estrutura. Um clube que não pode pagar R$ 10 mil vai pagar R$ 1 mil, e ele vai jogar com outro clube que paga R$ 1 mil, com atletas que estão iniciando. Tem vários casos. Tem clube que começa o campeonato, e a gente sabe que vai cair. Porque tem dificuldade de manter folha de pagamento, às vezes se propõe com folha de pagamento que não condiz com sua arrecadação, se propõe para fazer frente aos grandes e sabe que está fadado a cair. Então é isso. Buscar um equilíbrio dentro de cada competição, aí fica bom para todo mundo.
ÉPOCA – Que caso extremo vocês encontraram recentemente?
Martorelli – Tem um clube no Sul que nós pegamos no ano passado que estava cobrando do atleta para jogar. Então que salário esse clube pode oferecer? Se ele está cobrando as despesas… "Você está aqui concentrado e vai ter que pagar as despesas". O atleta, além de não receber, ainda paga para jogar. Esse cenário a gente não quer mais, e a gente sabe que ele está prejudicando o futebol. É desde embaixo até em cima. Tem clube que os meninos ficaram abandonados na concentração e para fazer um café de manhã tiveram que pegar água da chuva, porque estavam cortadas a água e a energia. Isso não é futebol. A gente tem que tratar o futebol profissional de forma profissional. Esse clube não vai disputar no profissional, vai disputar o amador até se reestruturar, e quando se reestruturar, volta. A proposta mais ampla é esta.
ÉPOCA – Não há um risco de marginalizar boa parte dos clubes? A situação continuará ruim para todas as pessoas envolvidas.
Martorelli – O risco é de fazer com que eles disputem campeonatos nos parâmetros que eles podem disputar. É lógico que eu não quero. Lógico que defendemos que, se tem 770 clubes profissionais, 5 mil clubes profissionais possam existir, mas 5 mil com condições de serem considerados profissionais. Eu não posso ficar preocupado e focado na situação do rebaixamento. Essa não é a preocupação da gente. A gente tem que optar por um caminho só. É o profissionalismo? É. A gente defende que o atleta possa receber salário. Consegue pagar salário? Ótimo, fica. Se não consegue, vai se estruturar. Continua jogando jogos de fim de semana, que não precisa pagar salário, paga um cachê, até que encontre formas para poder voltar. A marginalização não faz parte do nosso roteiro.
ÉPOCA – O calendário é motivo de desemprego generalizado no futebol. Na casa dos 60%. O que o sindicato propõe em relação a calendário?
Martorelli – A gente defende que antes do calendário a gente precisa ter certeza de quem é profissional. A gente não pode gastar energia montando um calendário para 770 clubes, sendo que 200 vão manter a condição de profissional. Não adianta montar divisões de A a Z no nacional se vários clubes não conseguem pagar salários nem taxa de arbitragem. A gente faz o sacrifício para pagar hospedagem e transporte para esses caras, mas eles não têm um médico. Não adianta. É uma discussão que para nós não tem fundamento. A gente tem que estruturar os empregadores, e a partir daí vamos buscar calendário. É lógico que tem várias propostas. Só que nessas várias propostas quem teoricamente fica preterido ou se sente prejudicado não topa. E alguém vai ser preterido ou prejudicado. Por exemplo: vamos discutir uma redução dos estaduais, isso impacta em transmissão e recursos que a televisão destina para essa competição. Então tem muitos clubes que já conversei, discuti, e eles dizem para não baixar, não diminuir o estadual, senão em vez de receber X vai receber X menos 200. "Não quero. Jogar com o timinho do canto do estado é interessante para mim pelo volume". Tem muita coisa para discutir. Mas primeiro a gente chegou à conclusão que a gente precisa dar essa estrutura. Depois que estruturou, pensamos como fazer.
ÉPOCA – Quantos atletas a Fenapaf representa?
Martorelli – O trabalhador é filiado ao sindicato estadual, e a entidade é filiada à federação nacional. Temos em São Paulo em torno de 6 mil. Na Fenapaf temos por volta de 14 mil atletas filiados, representados diretamente por nós.
ÉPOCA – O Brasil tem 28 mil jogadores profissionais. Por que vocês representam só metade?
Martorelli – Porque em alguns estados nós não temos sindicatos. Poucos, incipientes, começando trabalho. Podemos ter um pouco mais, 16 mil, 17 mil. Não temos sindicato em Manaus, tem bastante jogador lá. Não temos no Maranhão, tem bastante jogador lá. Rondônia, Acre, Tocantins. São oito estados que não temos sindicato. Faz um volume grande.
ÉPOCA – Esses atletas estão desamparados?
Martorelli – A gente socorre pela Fenapaf. Trouxemos recentemente oito jogadores que tiveram problema em Rondônia. Quando a gente sabe do caso, vai lá. Muitos atletas jogaram em São Paulo, Rio, e eles entram em contato com sindicatos que eles conhecem a existência.
ÉPOCA – Numa outra classe, como a bancária, um desemprego de 60% faria profissionais cruzarem os braços. Ela pararia. Por que o futebol não para?
Martorelli – Por desemprego? Bancário não para por desemprego.
ÉPOCA – 60% de desempregados não parariam uma categoria?
Martorelli – Por demissão, não por desemprego. Que é diferente. Eu dou aula de direito coletivo, estudo esse negócio não é de agora, não. São coisas diferentes. Por desemprego ninguém para. Por demissão, sim. Temos algumas particularidades importantes. Não vai falar em politização, porque o brasileiro não é politizado. Nem jornalista, nem advogado, nem atleta, não tem essa. Eu falo de cadeira. São atletas que sofrem influência de torcidas. Nenhuma outra categoria sofre. Eles têm que tomar uma decisão e uma postura contra o empregador, que são os clubes, que têm as torcidas. Tem uma intimidação. Qualquer outra categoria para reclamar falta de salário vai de peito aberto. Tivemos casos de atletas que foram reclamar, nós tomamos a ação, fizemos o clube pagar, a ação repercutiu, e a torcida foi para cima dos meninos. Todo mundo quer direito no Brasil. O atleta não precisa ter direito e é mercenário quando discute o direito dele. É uma categoria incompreendida até mesmo pelo atleta. Ele não compreende a categoria, e o público muito menos. Quando a gente conseguiu direito às férias, fui bombardeado. Os caras diziam: por que tem que ter férias na categoria? Todo mundo quer ter férias, mas não quer dar férias para o atleta, porque as férias matam o período de entretenimento dele. Tem muita coisa aí, sociológica, que vamos precisar de um mês para discutir.
ÉPOCA – Mas o Bom Senso conseguiu um certo apreço da opinião pública. Por que os sindicatos não conseguem?
Martorelli – O Bom Senso tem fórmula mágica para tudo. Não trabalha no dia a dia, com coerência, com a consistência das propostas. Fórmula mágica é fácil. Ter apoio a opinião pública eu também não consigo entender o alcance da sua afirmação. De verdade, de verdade, as atitudes tomadas por esse movimento, que não é um movimento de atletas, foram muito mais prejudiciais à categoria do que para favorecer. Quando era para tomar atitude mesmo, ninguém tomou, porque é difícil enfrentar patrão nessa condição. Conseguiu repercussão midiática quando a questão era calendário, que parecia muito fácil mudar. Quando isso murchou, não vimos mais nada. É muito fácil. Proposta mágica todo mundo tem, eu também tenho. Isso aqui é fácil. Tira metade dos clubes para cá, metade dos clubes para lá, baixa aqui e faz um campeonato ideal. Como se os parâmetros da Europa fossem os válidos aqui. Como não havia consistência – era midiático, mas não tinha consistência – tomou força por um tempo e depois morreu. Nós temos que trabalhar e encaixar todos os interesses.
ÉPOCA – Você lembra de alguma situação que ilustre essa crítica?
Martorelli – Eu participei de uma reunião, que eles também participaram, e a primeira proposta deles foi “olha, vamos diminuir os campeonatos estaduais”. Isso no auge. Levanta um presidente de clube grande e fala “não, ninguém vai mexer no campeonato estadual, porque no estadual eu arrecado tanto”. Então os clubes iniciam os estaduais com sub-23. Levanta o representante da Globo e diz: “eu não compro”. Eu falei: resolve. Entendeu? Fórmula mágica é fácil. Quero ver consistência, encaixar todos os interesses. O único modelo no futebol no mundo é esse aqui. Os que mais se aproximam de nós são Congo e Índia em termos geográficos, mas é muito fácil jogar para torcida e falar que vamos nos equiparar à Inglaterra, vamos nos equiparar à França. É muito fácil, só que é mentira. Eu te falo porque sou vice-presidente do sindicato mundial. Nós temos 66 sindicatos nacionais na base, e eu estou em duas comissões da Fifa. Eu conheço o que acontece no futebol no mundo. A gente procura ser leal na negociação, procura criar normas que sejam exequíveis, plausíveis, boas para todo mundo. Não adianta criar nada que vá contra o clube. Estou sempre preservando o atleta, mas num quadro em que todos saiam ganhando. E isso não se cria do dia para a noite. Tem muitas coisas que levaram cinco anos. Seria ótimo se estivéssemos na Inglaterra. Lá não se discute direito, porque direito em 1200 o povo já brigava pelos direitos. Não se discute direitos na Inglaterra, na França. Aqui, não. A gente tem que discutir pagamento de salários, observância das férias, coisas mais básicas. É muito fácil jogar para a torcida fórmulas mirabolantes.
ÉPOCA – Como é a experiência dos atletas na Justiça? Ouvimos relatos de jogadores que esperam até dez anos para receber causas ganhas.
Martorelli – A gente tem duas questões. Você tocou num ponto importante. Primeiro é essa morosidade na questão do recebimento. Que é uma briga que eu tenho homérica. Um clube pode dispensar o atleta e não pagar, e o atleta não pode se desligar do clube e não pagar. Quando o atleta tem dinheiro para receber, tem que esperar toda a morosidade judicial. E com um agravante: muitas vezes quando você recebe sua sentença e vai fazer a execução, você não consegue bens dos clubes para penhorar para fazer valer seu direito. Para isso estamos criando o fair play trabalhista e agora tive reunião na CBF para discutir uma câmara de arbitragem. Para facilitar e dar celeridade a esse procedimento. A gente está trazendo modernidade para cá no sentido de melhorar para todo mundo. O clube hoje entende, depois de muita negociação, que não adianta ficar protelando o problema. Porque a história mostrou. O que os clubes devem? Dívidas impagáveis. Vamos resolver o problema o mais rápido possível. Hoje você sabe o que seu bolso pode oferecer.
ÉPOCA – Qual a outra questão?
Martorelli – É o caso do Damião. Olha o que a Justiça fez. O juiz liberou, deu decisão favorável ao Damião, mas não deu a desvinculação do Santos. Quer dizer, olha que maluquice. Isso vai contra o direito. O Santos conseguiu segurar sem pagar salário. Se a revista não te pagar salário, em um mês, 45 dias, você pode se desvincular da revista e requerer todas as suas verbas. O Santos não pagou salários, ele tinha direito de se desvincular. Por três meses, ainda. Ele tem o direito de se desligar, o juiz deu e não deu. Por quê? Juiz também é gente. Às vezes esse juiz gente é torcedor, às vezes esse juiz gente torcedor tem medo que uma sentença pública pode dar. E vira o samba do crioulo doido. Por isso que estamos buscando um meio alternativo, para facilitar a vida de todo mundo, para andar mais rápido.
ÉPOCA – O que essa câmara faria?
Martorelli – Examinaria litígios com relação ao contrato de trabalho do atleta. Também. Não só do atleta, mas do treinador, enfim. Fazer uma câmara especializada. Eu e você podemos estabelecer ela como árbitra para qualquer problema nosso. Isso só vai se contestado se o procedimento for inadequado. Se for um procedimento que eu aceito e você aceita, a decisão dela é irrecorrível. Na Europa já acontece. Eu sou árbitro na Fifa por isso. Nos Estados Unidos acontece muito.
ÉPOCA – E o que é o "fair play trabalhista"?
Martorelli – Nós conseguimos negociar tanto em São Paulo quanto na CBF que o clube que não paga salário perde ponto. Isso deu uma freada na situação. O Santos no ano passado estava devendo, nós fizemos a denúncia e em 15 dias o Santos pagou. O Modesto [Roma Júnior, presidente santista] veio conversar comigo, dizendo que ia pagar e pagou. Na verdade nós não queremos a perda de pontos. Queremos um mecanismo para inibir o inadimplemento. Tem que ter efeito pedagógico, inclusive. Em São Paulo, depois que a gente conseguiu negociar e por no regulamento, os clubes já começaram a mudar até a forma de contratar, principalmente os pequenos. A gente cria mecanismos visando formas de fazer com que o clube entenda a necessidade de fazer uma administração equilibrada e honesta. Honesta no sentido de: vou gastar aquilo que eu tenho. É aquela história. “Preciso ser campeão. Para isso vou contratar o Maradona, o Beckenbauer, o Pelé, o Platini, e não importa se vou pagar salário”. A coisa não pode ser assim. A maioria das pessoas só gasta aquilo que pode. Eu não contrato uma empregada doméstica por R$ 5 mil porque eu não posso, mas o clube contrata. Ele precisa mostrar serviço e também não há compromisso desse dirigente com o dinheiro do clube. A forma de minimizar isso é fazer com que ele, como torcedor, que não tem compromisso com administração de forma empresarial, vá ter o compromisso com a perda de pontos do clube.
ÉPOCA – Que tipo de situação se resolveria na câmara de litígios?
Martorelli – O clube vai à Justiça alegando que as verbas que ele tem direito a receber, de patrocinador e até da cota de televisão, também servem para pagar salário daqueles que estão atuando. E quem tem salário tem privilégio. Tem juiz que dá. Ele deixou de pagar teu salário, o dinheiro dele está penhorado por causa do teu salário, mas ele vai na Justiça e diz que precisa para pagar meu salário também. Tem juiz que dá. Acaba liberando. Isso resolve na câmara de disputas. Deu prazo, clube não pagou, também vai perder pontos. Além de o atleta continuar na Justiça para receber os valores que lhe são devidos. Ele vai buscar na Justiça depois de uma decisão irrecorrível, e o clube vai perder ponto.
ÉPOCA – Outras categorias têm convenções coletivas. O piso salarial. No Brasil, só o sindicato gaúcho conseguiu estabelecer um piso. Por quê?
Martorelli – Pela dificuldade de os clubes entenderem que há necessidade de negociação. Nós já temos o dissídio e agora tive reunião definitiva aqui em São Paulo para assinar até abril a nossa convenção. E já viemos tratando há bastante tempo em termos nacionais. Queremos até o fim do ano estabelecer isso. Facilita. Os clubes acham que numa convenção coletiva só o empregado vai ter benefício. Eu consegui mostrar para eles que não. A gente estabelecendo e normatizando uma série de procedimentos fica bom para todo mundo. Mas é um trabalho de convencimento. Essa convenção mesmo eu negocio há quatro anos.
ÉPOCA – O sindicato não deveria ser mais "agressivo"?
Martorelli – A gente tem que fazer uma escolha. A Justiça não dá a resposta que a gente quer. Às vezes demora um ano para julgar um pedido de embargo. Não dando a resposta que a gente quer, a gente prefere negociar e mostrar. Buscar meios. Estabelecer mesmo um canal de confiança, de lealdade, de mostrar que é bom para todo mundo. Essa coisa de sindicato xiita não existe mais. É muito fácil pegar, botar caminhão de som e impedir que o jogador entre no campo. Só que se eu for impedir, o cara fica bravo comigo. E aí a repercussão é diferente. Bancário também é impedido de entrar no banco. Eles querem trabalhar, mas são impedidos, só que eles reclamam no privado. Não vai para a imprensa, e o sindicato não fica mal visto. Tem uma série de questões que têm que ser analisadas para tomar decisões. Mas há um planejamento, sim, e há uma análise de buscar o que é melhor, da forma que é melhor, no melhor tempo. E esse é o melhor tempo de tudo que a gente está fazendo.
ÉPOCA – Quais foram as principais conquistas do sindicato até agora?
Martorelli – Muitas. Muitas. Principalmente o fim do passe. O trabalho que acabou com o passe foi uma proposta nossa. O fim do passe levou o atleta a discutir a sua relação na Justiça do Trabalho, que a gente não tinha isso. Depois se tornou uma prática, e os clubes começaram a perder atletas porque não pagavam salário. A gente mudou todo um quadro. Depois vêm o direito de arena, muitos atletas fazem programação e conseguem aumentar seu patrimônio consideravelmente com esse valor, a regularização das férias, a regularização dos horários dos jogos. Fora o resto que a gente tem em convênios, participação, tem umas coisas. A estruturação física do sindicato. A gente não tinha sede. Tem um monte de coisa.
ÉPOCA – A Lei Pelé é de 1998. Passaram-se 18 anos. Não é pouco?
Martorelli – Não. É muito. O fato é que tem todo um contexto econômico. O que a gente discute com Corinthians, São Paulo e Santos não dá para discutir com União Agrícola Barbarense, Oswaldo Cruz e Francana. Você não consegue fazer uma ação que vá atingir todos. O sindicato de metalúrgicos em uma ação pega toda a categoria. Não tem essa. É muito fracionado. Às vezes o que a gente negocia com o Corinthians não serve para o São Paulo. Temos um mundo muito diverso de tudo o que está por aí. Na minha época, fiquei um ano e sete meses encostado com propostas de clubes grandes sem poder aceitar e sem poder receber salários. Isso tem 30 anos. A gente andou, e andou bastante, com tudo isso. É lógico que falta, mas falta para o país. Não falta só para o futebol. O futebol viveu um ápice econômico, como o país, e agora vive uma turbulência, como o país. Não dá para descontextualizar o futebol de tudo o que a gente atravessa, da educação que a gente tem. O brasileiro é interessante porque ele não vai na assembleia do condomínio, mas depois xinga o síndico, porque tomou atitudes e ele não participou. Ainda mais agora com internet é muito fácil acusar e botar o dedo na ferida sem ter feito, sem ter participado. A gente chama participação, tenta expandir trabalho, temos uma revista que a gente leva informação aos atletas, temos redes sociais, enfim. Tentamos expandir as coisas de acordo com o que vai aparecendo. A gente está satisfeito com tudo o que está fazendo. Já conseguimos bastante coisa.
Fonte: Revista Época
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